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Quando o Brincar Fala Mais Alto: o Poder da Ludoterapia na Escuta Infantil

Quando o Brincar Fala Mais Alto: o Poder da Ludoterapia na Escuta Infantil

Léo tinha sete anos. Não falava muito, mas toda vez que entrava na sala de terapia, corria para os blocos de montar. Empilhava-os com cuidado, em silêncio, enquanto seus olhos pareciam buscar algo no ambiente. Não havia perguntas nem respostas formais — mas ali, no brincar, algo se comunicava.

Léo demonstrava entusiasmo ao jogar UNO: vibrava com as vitórias e se mostrava respeitoso diante das regras. Contudo, ao término do jogo, quando temas mais subjetivos começavam a emergir, seu olhar se distanciava. Ele tentava manter-se no lúdico, talvez por ainda não estar pronto para acessar conteúdos emocionais mais profundos. Seu envolvimento intenso parecia funcionar como uma defesa sutil — um pedido silencioso por mais tempo e mais vínculo. Para Léo, o brincar era mais que passatempo: era proteção, estrutura e expressão.

Com o passar das sessões e a constância dos encontros, Léo começou a apresentar sinais sutis de abertura. Em uma das sessões, durante uma brincadeira simbólica, nomeou um personagem como “o menino que fica com medo quando termina a brincadeira”. O terapeuta acolheu essa fala com empatia e curiosidade, sem apressar o processo, apenas reconhecendo: “Talvez esse menino goste muito do tempo que passa aqui e queira ficar mais um pouquinho.”

Nas semanas seguintes, Léo explorou novos brinquedos, criou narrativas simbólicas e encenou histórias de crianças que se escondem, que sentem medo de falar, mas que encontram alguém capaz de escutar. Esse movimento não foi forçado — emergiu da solidez do vínculo, da previsibilidade dos encontros e do respeito ao seu tempo de expressão. A ludoterapia, alicerçada na escuta fenomenológica, ofereceu a ele um espaço seguro para existir em sua forma mais genuína.


1. O que é a Ludoterapia?
A ludoterapia é uma abordagem psicoterapêutica que utiliza o brincar como forma de comunicação e expressão. Com base em teóricos como Freud, Melanie Klein, Donald Winnicott e Virginia Axline, a prática reconhece que o brincar é a principal linguagem da infância — um modo legítimo de expressar afetos, conflitos e vivências internas.

A ludoterapia fenomenológico-existencial, por sua vez, amplia esse olhar. Mais do que técnica, propõe uma escuta comprometida com o sentido vivido pela criança no aqui-agora. Parte do princípio de que o significado emerge na relação e que a criança se revela no tempo da experiência. O terapeuta não interpreta de fora, mas se coloca em presença autêntica, disponível a acolher o mundo vivido da criança.


2. Fundamentos Teóricos

  • Winnicott: o brincar como espaço potencial de experimentação e relação.
  • Piaget: o jogo como expressão de estágios do desenvolvimento cognitivo.
  • Axline: princípios da terapia não-diretiva centrada na criança.
  • Fenomenologia existencial: valorização do vivido no aqui-agora; escuta do sentido atribuído pela criança à experiência; presença autêntica do terapeuta; abertura ao fenômeno sem antecipações ou julgamentos.

3. O Brincar como Linguagem
Na infância, o brincar cumpre funções essenciais: regula emoções, permite a simbolização de conflitos, estimula a criatividade e promove a comunicação. Ao brincar, a criança fala de si — com gestos, repetições, personagens e enredos. Mesmo que não utilize palavras, ela comunica o que sente, deseja ou teme.

No caso de Léo, a repetição do jogo e o desejo de prolongar o tempo com o terapeuta não expressavam apenas apego ao lúdico, mas também a busca por segurança na relação. O vínculo terapêutico começa a se formar justamente quando essa forma de se relacionar é reconhecida e acolhida, sem pressa ou imposição.


4. O Espaço Terapêutico Lúdico
O setting lúdico é um ambiente cuidadosamente estruturado para oferecer liberdade com contorno: brinquedos simbólicos, materiais expressivos, jogos e miniaturas. O terapeuta participa como um outro que escuta, observa e, quando apropriado, entra na brincadeira.

Na perspectiva fenomenológico-existencial, mais importante do que os brinquedos é a qualidade da presença do terapeuta. O brincar torna-se significativo quando é testemunhado com autenticidade, sensibilidade e abertura. O setting, portanto, é um espaço de encontro — um convite à relação.


5. Intervenções e Recursos Terapêuticos

  • Jogos com regras (ex: UNO, Jogo da Memória): possibilitam observar como a criança lida com frustrações, vitórias, perdas e limites; o terapeuta acolhe a experiência vivida em cada situação.
  • Histórias inacabadas: favorecem a expressão simbólica da criança; seu desfecho espontâneo pode revelar desejos, conflitos e modos de enfrentamento.
  • Desenho livre, pintura e construção: permitem à criança se expressar em camadas não verbais, ampliando a compreensão do seu mundo interno.
  • Presença partilhada: estar com a criança no brincar sem conduzir ou interpretar de imediato; acolher o silêncio como parte do processo terapêutico.

A brincadeira simbólica é um tipo de jogo no qual a criança utiliza objetos, personagens ou gestos para representar situações do seu mundo interno e externo. Ao transformar um bloco em um carro, uma boneca em uma mãe ou uma caixa em uma casa, ela simboliza conteúdos subjetivos que ainda não podem ser nomeados verbalmente.

Na ludoterapia fenomenológico-existencial, a brincadeira simbólica é vista como expressão legítima do existir. Ela revela modos de ser, de estar-no-mundo e de se relacionar. O terapeuta, ao acolher essa expressão com presença e escuta autêntica, torna-se testemunha de uma cena interna encenada diante de si.


6. Cuidados e Considerações Éticas
A prática da ludoterapia exige respeito ao tempo e à forma de expressão da criança. A confidencialidade, a escuta sem julgamento e o compromisso com a singularidade do paciente são pilares fundamentais. Nem sempre o silêncio é resistência — muitas vezes, é o pedido mais honesto por escuta e cuidado. Na abordagem fenomenológico-existencial, o terapeuta abandona a tentativa de decifrar e passa a se abrir para o que se revela no encontro.


7. Reflexões Finais
Brincar é um direito da infância, mas na ludoterapia torna-se também caminho de cuidado e transformação. Quando palavras não são suficientes, o brincar oferece uma ponte entre o mundo interno e o relacional. O terapeuta que escuta essa linguagem se propõe a acolher o não dito, a respeitar os silêncios e a confiar no poder do simbólico.

A ludoterapia fenomenológico-existencial nos ensina a sustentar a presença terapêutica mesmo quando nada é dito, a confiar no vínculo que se constrói no tempo da criança e a honrar cada expressão — por menor que pareça — como um gesto legítimo de existência.


Conclusão
Como destaca Débora Cândido de Azevedo:

“Aqui, o espaço terapêutico pode constituir-se num locus apropriado para esse estudo, no qual o que se passa no espaço da ludoterapia é foco desta reflexão… A ação do brincar será entendida como o elo de ligação que permite alguma intervenção com caráter terapêutico e consequentemente alguma eficiência, no sentido de levar a criança à uma existência mais aberta ou autêntica.” (Azevedo, 2011, p. 23)

Na sala terapêutica, portanto, o brincar não é apenas recurso: é presença, escuta e possibilidade de transformação.

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